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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Quem? o próximo?



“Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Levítico 19:18
Na literatura sapiencial do Antigo Oriente Médio a discussão de questões éticas era recorrente e seu foco geralmente o dia-a-dia do ser humano e seu relacionamento com os outros. A ética, no entanto, não fazia parte da preocupação do mundo religioso em geral, que via a religião como mágica (convencer os deuses a fazerem o que você deseja); com exceção de Israel.
A relação distintiva entre a preocupação com o outro e a religião não só pode ser notada em Gênesis 1:27, ao se apontar que todos seres humanos foram criados à imagem e semelhança de DEUS, mas também em alguns discursos proféticos.
Em Isaías 1:2-3, por exemplo, é dito: “criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim […]”; “o boi conhece seu possuidor, e o jumento o dono de sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende.” Apesar de apresentarem atitudes religiosas, o povo de Israel é reprendido por DEUS por falta de conhecimento. E aqui já enxergamos o cerne da questão. Biblicamente conhecer a DEUS significa se preocupar com o outro. Isto é visto claramente na sequência do mesmo capítulo, nos versículos 15 e 17: “Pelo que, quando estendeis as mãos, escondo de vós os olhos; sim quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas”.
O profeta Jeremias também parece apontar para a mesma linha de raciocínio ao dizer (Jeremias 22:16): “Julgou a causa do aflito e do necessitado, porventura, não é isso conhecer-me, diz o SENHOR”. Conhecer a DEUS implica, também, em ver no outro a imagem de DEUS.
Contudo, isto tem se tornado cada vez mais penoso em uma sociedade que enfatiza o individual. Claramente não existe dignidade sem a capacidade de ficar sozinho. A solidão é um processo necessário paras as incursões na histeria da sociedade. No entanto a solidão genuína é uma busca da genuína solidariedade. O homem sozinho é um conceito. Ele está inserido numa comunidade. Com meus contemporâneos eu vivo, sofro e me alegro. Para o homem, ser, significa ser junto com outro. Sua existência é coexistência.
Lucas 10:25-37 nos orienta a como lidar com a questão fundamental da religião, proteger a imagem de DEUS no outro. Um intérprete da lei se aproxima de Jesus com a intenção de coloca-lo à prova. Ele pergunta o que deveria “fazer para herdar a vida eterna”. De cara vemos na pergunta do intérprete, duas palavras que não combinam juntas, “fazer” e “herdar”. Apesar da perspectiva do intérprete estar completamente equivocada, Jesus, respondendo àquele homem, faz uma pergunta que o deixa completamente desconcertado e provoca nele a necessidade de citar Levítico 19:18: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. E aqui, nos deparamos com uma história conhecida.
Um homem foi roubado na estrada e deixado semimorto. Quem é o homem ferido? Filho de quem? Pai de quem? Judeu? Samaritano? Jesus elimina qualquer possibilidade de identificação. Ele está impotente para pedir socorro, ou oferecer uma recompensa. O ferido está inteiramente nas mãos do “outro”. Um sacerdote e um levita passam, e não dão a mínima para aquele homem. E então, a maior das improbabilidades acontece. Um samaritano (aparentemente de um povo de difícil relacionamento com alguns judeus) representa a perfeição de amor ao outro. O samaritano, golpe de intolerância racial, social, religiosa e “denominacional”, coloca aquele homem em seu animal e o auxilia pagando todos os gastos para sua recuperação.
Ao final desta história Jesus faz uma pergunta ao intérprete que subverte a pergunta a pergunta inicial. Ela mostra que mesmo na perspectiva errônea do intérprete sobre o que deveria ser “feito” para herdar, ele não entendia o cerne da questão. O Messias pergunta: “Qual dos três foi o próximo?”
Na pergunta de Jesus o próximo é quem pratica a ação. O próximo não é o objeto da ação, mas o sujeito dela. Não é a quem se serve, mas aquele que serve. Quem é o meu próximo? Não interessa. A pergunta que deve nos interessar é: Sou eu o próximo para qualquer um?

http://terceiramargemdorio.org/texto/62/

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Apenas uma vez...

Existem lugares em que você só pode ir uma única vez na vida. Rios que se pode banhar somente uma vez, e nada mais. Porque, quando sai de lá, já não é mais aquela mesma pessoa. Aquela paisagem inesquecível. Aquela vista que os seus olhos quase se recusaram a acreditar. Aquela emoção que você mal consegue explicar. Frio na barriga, arrepio na pele, adrenalina na veia, lágrimas nos olhos. Aquela angústia que transborda o sono. Lugares em que você vai e não volta nunca mais. Lugares estes que sugam todo o seu “eu”, e devolvem uma outra pessoa. Quase sempre, uma pessoa melhor. Mais revigorado. Menos pessimista. Com mais perspectivas. Menos extremista. Porém não muito diferente daquela outra pessoa. Um instante não lhe muda completamente, mas  incita novos caminhos. Daí a sua ação vai consumar todos os outros pensamentos. Você volta para o seu mundo e tudo parece menor, mais acanhado. E a saudade é cada vez maior. Já passou por algo assim? Aquela experiência que você viveu, e que viverá eternamente dentro de você. A vida é feita de instantes. Uma conversa, uma risada, um luar, uma noite, um projeto, um choro, um minuto, e a vida nunca mais será a mesma. É um momento que se aproxima das portas das possibilidades. Que é uma encruzilhada de rotas, de universos paralelos a serem descobertos. São perdas e ganhos, dores e alegrias. O que será da história depois deste capítulo? O que reserva para essa escolha, que não voltará atrás? E, se alguém tiver vivido aquilo junto de você, também se tornará eterno nas lembranças. Trata-se de um ponto do passado em que sua mente nunca se cansará  de reencontrar e reinventar do mesmo ponto, visto por várias vezes e de vários outros lugares. Em um ciclo de complementação futuro e passado. Porque, mesmo que o tempo passe, quando você fechar os olhos, ainda conseguirá ser afetado ao sentir aquele cheiro, aquelas luzes clareando o seu rosto, aquele vento, aquela sensação de que, só por ter passado por aquilo, todo o suor e lágrimas descidas do rosto já terá feito todo o sentido. E viver é exatamente isso. Viver em instantes enquanto durar a vida. 

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O sábio e o silêncio

Quando o tolo é ofendido, logo todos ficam sabendo, mas o prudente faz de conta que não foi insultado. Pr.: 12.16
Quem retém as palavras possui  o conhecimento, e o sereno de espirito é homem de inteligencia.
Até o tolo, quando se cala, é tido por sábio, e o que cerra os lábios, por sábio. Pr.: 17.27,28

    O silêncio na hora certa distingue o tolo e o sábio.

    Portanto aquele que propaga a sua estupidez por antecedência se torna tolo, mas aquele que espera o momento de pedir ajuda consegue achar melhor solução.

    Pois não é de muito falar que o sábio é conhecido, mas ele consegue discernir o certo e o errado.

    Quando o país em guerra grita as suas verdadeiras fraquezas, logo é atacado e derrotado.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Ofendidos

Certa pessoa incomodada pela rotina pacífica de um bom homem que tinha passado de perseguições, relutante indagou-lhe:

 - Como consegue estar assim? Como conseguiu perdoar todos aqueles que te ofenderam e que fizeram tanto mal?

Calmamente o senhor respondeu sem vacilar: 

- Nunca tive ofensores, pois nunca fui ofendido! 

 A tamanha serenidade daquele senhor que mesmo com pouca forca mostrou grande sabedoria para enfrentar a vida da melhor maneira de lutar uma guerra pacificamente.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Angústia por Ed René Kvitz

Angústia é o estado de quem está diante de “um afluxo incontrolável de excitações muito variadas e intensas a que é incapaz de responder”; pelo menos foi o que disse o Houaiss. Alma é o conjunto indissociável formado pelo corpo e o espírito humano: pó da terra + fôlego da vida = alma vivente, conforme o Gênesis, livro da Bíblia Hebraica que narra a origem da raça humana. As angústias da alma implicam, portanto, um inevitável estado de excitamento diante de incontáveis possibilidades, tanto para o corpo quanto para o espírito: a dança da alma diante do efêmero e o eterno, o singelo e o sublime, o animal e o divino, a terra e o céu, que se entrelaçam numa unidade de mútua afetação, pois o que o corpo experimenta toca o espírito e o que o espírito penetra faz tremer o corpo. As angústias da alma nos jogam de um lado para o outro e não sabemos se nos basta um calmante ou uma oração, ou ambos. Não se sabe se o apelo vem da imanência ou da transcendência. Não é possível distinguir o necessário: o pão ou a providência, o aplauso ou o significado, o sexo ou o afeto, o prazer ou o arrebatamento. Na verdade, não sabemos sequer se uns existem sem os outros, ou, por exemplo, onde estará o afeto sem o toque, a providência sem a mesa posta, a realização sem o reconhecimento, o significado sem a aprovação, o êxtase sem a sensação. Pode o faminto experimentar a segurança; a presença conviver com a solidão; o útil permanecer anônimo? De noite na cama, custo a pegar no sono, pois minha mente não para, meu corpo não aquieta, meu espírito não silencia. O coração acelera, a criatividade dispara, as preces se multiplicam. Outra noite percorri mentalmente, passo a passo e em ritmo lento, os 10Km que percorro quase diariamente em minhas corridas matinais no campus da Universidade de São Paulo (USP). Adormeci. Meu exercício predileto, no entanto, é me imaginar andando sobre as nuvens, calça larga e arregaçada de um algodão leve bege clarinho e um camisão tipo bata, branco, escorrendo para fora da calça. Diante de mim um imenso arquivo de madeira, branco patinado, com gavetas abertas e em cada gaveta uma etiqueta com a inscrição de um objeto de minhas preocupações, ansiedades, sonhos, responsabilidades e amores: uma gaveta para minha esposa, uma para cada um dos meus filhos, minha mãe, meu trabalho, meus amigos, meu futuro, e o paradoxo do mundo distribuído em incontáveis gavetas, que percorro lentamente até mergulhar no sono. Caminho lentamente entre as nuvens, como que flutuando, com o único esforço de fechar cuidadosamente cada gaveta, num gesto de gratidão, devoção e consagração: fechar a gaveta é entregar seu cuidado às mãos de Deus. Assim oro todas as noites. Assim vou desacelerando a alma, diminuindo e cadenciando o coração, tratando cada fantasia e administrando cada conflito... Assim oro todas as noites. E durmo sem saber quais gavetas ficaram por fechar. Mas a cada manhã, com o sol, também se levanta minha alma. E com ela suas angústias. E sobre tudo, a misericórdia e a bondade de Deus, que me seguem todos os dias da vida. A alma angustiada retoma seu caminho, põe o pé na estrada, mangas arregaçadas, até deitar-se à noite, com o coração batendo acelerado, a mente rodando em velocidade incalculável e o esboço do dia seguinte rabiscado na tela da madrugada. As gavetas estão todas abertas novamente. E lá se vai o andarilho das nuvens, fechar uma por uma, de novo e mais uma vez, até que as luzes se apagam. Todo dia, toda noite. Tudo jamais igual. Os encontros e desencontros do dia estão nas primeiras gavetas: frases pela metade, falas desconexas, palavras mal-ditas; vergonhas e virtudes; pessoas – de perto, de longe, de sempre; tarefas inacabadas e projetos deflagrados; mais vontades, mais planos, mais promessas, mais, e cada vez mais. Mas as gavetas mais pesadas e difíceis de empurrar são as que carrego comigo durante a caminhada diária. Pego cada uma delas todas as manhãs e as levo para a luz do dia. Nem sempre consigo coloca-las no armário branco do chão das nuvens, e quando ficam amontoadas ao pé da cama, são prenúncio de noites mal dormidas. São estas as maiores angústias. E delas ainda não consegui me livrar completamente. São três as gavetas pesadas: a gaveta da integridade, da criatividade, e da legitimidade. Minha gaveta da integridade é muito pesada: o esforço sem tréguas, para preservar o coração puro e as mãos limpas. Manter distantes coisas como a inveja, a ganância e a cobiça; o ódio, a mágoa e o ressentimento; o cinismo, a desesperança e a incredulidade; a preguiça, a indolência e a displicência; o orgulho, a vaidade e a prepotência. Conviver com olhares, cartazes e esbarrões; propostas, ofertas e insinuações; possibilidades, oportunidades e devaneios; promessas, presentes e pretensões; notícias, informações e presságios; eu, tu, eles – nós, todo dia, toda hora... viver é mesmo muito perigoso, digo, maravilhoso. A outra gaveta, da criatividade, não pesa menos: o trabalho incessante para conseguir “the master piece”, a obra prima, o grande feito, a grande sacada, o grande insight, a tacada de mestre. Provavelmente isso tem a ver com o anseio por relevância, aquela coisa de deixar um legado, oferecer o melhor dos talentos e habilidades para o bem comum. Talvez, em termos mais infantis ou egocêntricos mesmo, algo como escrever na porta do banheiro do museu em New York “erk esteve aqui”. Que loucura isso de desejar ser contado entre os gênios da raça... viver é mesmo muito cansativo, digo, criativo. A última gaveta é mais uma idiossincrasia, uma encucação particular e bem pessoal. Ou, quem sabe, coisa de consciências mais sensíveis. A meu respeito, prefiro a primeira opção; concedo a segunda para pessoas como você. Trata-se da gaveta da legitimidade. Advirto que somente pessoas que se julgam privilegiadas têm que abrir e fechar esta gaveta – ou carregá-la. No meu caso, sofro muito com ela. Desde sempre acredito que Deus marcou um “x” nas minhas costas e colocou alguns anjos especiais no meu encalço. Tenho mais do que preciso e, graças à bondade dos amigos e de pessoas que querem demonstrar sua gratidão para comigo sem que eu nem mesmo saiba o que foi que fiz, acessos que meu dinheiro jamais pagaria. Tenho uma vida boa e me considero feliz e realizado. As coisas onde ponho a mão, geralmente dão certo, e raramente ouço “não” como resposta (sim, é verdade, não peço muito). O problema disso é que toda vez quando me dou conta da minha bem-aventurança, lembro da desventura dos outros. Outro dia li que 7 dólares prorrogam a vida de uma criança por uma semana em algum canto do terceiro mundo. Pronto, já não consigo ir ao cinema sem considerar a legitimidade de gastar para curtir o último do Shyamalan, regado à pipoca e chá gelado. A questão é: num mundo de desigualdades e sociedades miseráveis, o que se pode considerar um prazer legítimo? E me diga lá, por que minha vida – que já foi, sim, tocada pela tragédia – é tão boa, enquanto a de outros – inclusive os que eu amo – sofrem tanto? Enfim, uns com tanto, e outros com tão pouco... viver é mesmo muito injusto, digo, gratificante. Por essas e outras é que minha alma vai dormir exausta. E haja gaveta pra fechar... Por enquanto, sigo meu caminho sob o epitáfio da Olga Benário: lutando pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo.